quarta-feira, 29 de junho de 2011

Aspectos Históricos da Pesquisa com Animais

 

Os meninos apedrejam uma rã por diversão,
mas a rã morre de verdade.
Bion (c200 aC)

 

Pitágoras (582-500 aC) pensava que a amabilidade para com todas as criaturas não-humanas era um dever. O uso de modelos animais em pesquisas vem sendo feito desde a antigüidade. Neste período, Hipócrates (c450 aC) já relacionava o aspecto de órgãos humanos doentes com o de animais, com finalidade claramente didática. Os anatomistas Alcmaeon (500 aC), Herophilus (330-250 aC) e Erasistratus (305-240 aC) realizavam vivissecções animais com o objetivo de observar estruturas e formular hipóteses sobre o funcionamento associado às mesmas. Posteriormente, Galeno (129-210 dC), em Roma, foi talvez o primeiro a realizar vivissecção com objetivos experimentais, ou seja, de testar variáveis através de alterações provocadas nos animais . No século 17, o filósofo René Descartes (1596-1650 dC) acreditava que os processos de pensamento e sensibilidade faziam parte da alma. Como na sua concepção os animais não tinham alma, não havia sequer a possibilidade de sentirem dor.
A primeira pesquisa científica que utilizou animais sistematicamente, talvez tenha sido a realizada por William Harvey, publicada em 1638, sob o título "Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus". Neste livro o autor apresentou os resultados obtidos em estudos experimentais sobre a fisiologia da circulação realizados em mais de 80 diferentes espécies animais.
O filósofo inglês Jeremy Benthan, em 1789, no cap. XVII de seu livro "Introduction to the principles of morals and legislation", retomando idéias já existentes na antiga Grécia, lançou a base para a posição atualmente utilizada para a proteção dos animais. Benthan escreveu: A questão não é, podem eles raciocinar ? ou podem eles falar ? Mas, podem eles sofrer ?
A publicação do livro “A Origem das Espécies” de Charles Darwin, em 1859, estabeleceu os pressupostos do vínculo existente entre as diferentes espécies animais num único processo evolutivo. Desta forma, a teoria de Darwin possibilitou a extrapolação dos dados obtidos em pesquisas com modelos animais para seres humanos.
Um importante episódio para o estabelecimento de limites à utilização de animais em experimentação e ensino foi o que envolveu a esposa e a filha de Claude Bernard. O grande fisiologista utilizou, ao redor de 1860, o cachorro de estimação da sua filha para dar aula aos seus alunos. Em resposta a este ato, a sua esposa fundou a primeira associação para a defesa dos animais de laboratório. Claude Bernard que deixou inúmeros textos, de excelente qualidade, sobre a ética para com os pacientes, dizia que parte da postura do cientista ser indiferente ao sofrimento dos animais de laboratório .
Claude Bernard , em seu livro An Introduction to the Study of Experimental Medicine, publicado em 1865, justificava a utilização de animais em pesquisas, alegando que:
    Nós temos o direito de fazer experimentos animais e vivissecção? Eu penso que temos este direito, total e absolutamente. Seria estranho se reconhecêssemos o direito de usar os animais para serviços caseiros, para comida e proibir o seu uso para a instrução em uma das ciências mais úteis para a humanidade. Nenhuma hesitação é possível; a ciência da vida pode ser estabelecida somente através de experimentos, e nós podemos salvar seres vivos da morte somente após sacrificar outros. Experimentos devem ser feitos tanto no homem quanto nos animais. Penso que os médicos já fazem muitos experimentos perigosos no homem, antes de estudá-los cuidadosamente nos animais. Eu não admito que seja moral testar remédios mais ou menos perigosos ou ativos em pacientes em hospitais, sem primeiro experimentá-los em cães; eu provarei, a seguir, que os resultados obtidos em animais podem ser todos conclusivos para o homem quando nós sabemos como experimentar adequadamente.
A primeira lei a regulamentar o uso de animais em pesquisa foi proposta no Reino Unido, em 1876, através do British Cruelty to Animal Act. Em 1822, já havia sido instituída a Lei Inglesa Anticrueldade (British anticruelty act). Esta regra foi também chamada de Martin Act, em memória de seu intransigente defensor Richard Martin (1754-1834). Ela era aplicável apenas para animais domésticos de grande porte. A primeira lei a proteger estes animais, talvez, tenha sido uma que existiu na Colônia de Massachussets Bay, em 1641. Esta lei propunha que: “ninguém pode exercer tirania ou crueldade para com qualquer criatura animal que habitualmente é utilizada para auxiliar nas tarefas do homem”. No século XIX também surgiram as primeiras sociedades protetoras dos animais. A primeira foi criada na Inglaterra, em 1824 com o nome de Society for the Preservation of Cruelty to Animals. Em 1840 esta Sociedade foi assumida pela Rainha Vitória, recebendo a denominação de Real Sociedade. Em 1845 foi criada na França a Sociedade para a Proteção dos Animais. Em anos posteriores foram fundadas sociedades na Alemanha, Bélgica, Áustria, Holanda e Estados Unidos.
A primeira publicação norte-americana sobre aspectos éticos da utilização de animais em experimentação foi proposta pela Associação Médica Americana em 1909 .
Durante muitos anos as pesquisas que se utilizaram de modelos animais não foram fortemente questionadas devido ao seu alto impacto social, tais como as que possibilitaram o desenvolvimento das vacinas para raiva, tétano e difteria. Por outro lado, neste mesmo período surgiram inúmeras sociedades de proteção aos animais.
Em 1959, o zoologista William M.S. Russell e o microbiologista Rex L. Burch publicaram um livro , onde estabeleceram os três “Rs” da pesquisa em animais: Replace, Reduce e Refine. Esta proposta não impede a utilização de modelos animais em experimentação, mas faz uma adequação no sentido de humanizá-la.
O ressurgimento do debate sobre a utilização de animais em pesquisas e em outras atividades, tais como os realizados em abatedouros, indústrias de cosméticos, criação e transporte, pode ser devido ao Prof. Peter Singer. O seu livro "Animal Liberation", publicado em 1975, causou uma polêmica mundial, principalmente os relatos das condições que os animais eram submetidos pela indústria de cosméticos e no processo de produção de alimentos .
A UNESCO, em reunião realizada em Bruxelas, em 27 de janeiro de 1978, estabeleceu a Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Neste documento estão lançados os grandes temas de discussão sobre este assunto.
No Brasil, a lei 6.638, de 08 de maio de 1979, estabeleceu as normas para a prática didático-científica da vivissecção de animais. Estas normas, que nunca foram regulamentadas, estipulam que somente estabelecimentos de terceiro grau podem realizar atividades didáticas com animais. Esta lei estabelece que as pesquisas devem ser realizadas sempre dentro do critério de não causar sofrimento nos animais envolvidos.
Durante a década de 80, alguns movimentos de defesa dos direitos dos animais, especialmente na Inglaterra, praticaram alguns atentados contra laboratórios, biotérios, instalações universitárias e até mesmo contra residências de pesquisadores. Estas ações atingiram tal magnitude, que a Associação Mundial de Medicina publicou uma declaração específica sobre a necessidade de serem estabelecidas garantias de vida para os pesquisadores e seus familiares.
Em 1986, a lei inglesa foi atualizada, porém preservando todo o seu corpo doutrinário. Foram publicadas novas normas técnicas para os procedimentos que envolvam animais em projetos de pesquisa .
Em 1996 foram apresentados no Brasil vários projetos de lei estabelecendo novas normas para as pesquisas com animais, sem que qualquer um deles tenha sido aprovado, até o presente momento.


Goldim JR, Raymundo MM. Pesquisa em Saúde e os Direitos dos Animais. 2 ed. Porto Alegre: HCPA, 1997.

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